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sábado, 5 de enero de 2013

A brusca poesia da mulher amada - Vinicius De Moraes

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente... 
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor - oh, a mulher amada é como a fonte! 
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo 
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido 
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito? 
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente? 

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios 
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados... 

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias 
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.



II
A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio 
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite 
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada 
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos 
astros. 
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada 
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula 
E o elemento verde antagônico. A mulher amada 
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro 
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso 
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen. 
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada 
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite 
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada 
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica 
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada. 
Nascitura. Nascitura da mulher amada 
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher 
amada 
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? - a mulher amada! 
Quem colhe a tempestade? - a mulher amada! 
Quem determina os meridianos? - a mulher amada! 
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada. 
Talvegue, estrela, petardo 
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada 
Quando! E de outro não seja, pois é ela 
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita 
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda 
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta 
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades. 
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas. 
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!


III
A Nelita 

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado 
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido 
herói sem mácula 
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a 
bilirrubina 
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco 
quilos 
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as 
confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia. 
Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância 
já me chega o rastro. 
É ela uma menina, parece de plumas 
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos 
ventos 
Empós meu canto. É ela uma menina. 
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina 
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes 
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos 
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos 
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas 
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa 
Em rodopios nítidos 
Criando vácuos onde morrem as aves. 
Seu corpo, pouco a pouco 
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo 
Como uma escura rosa voltejante 
Surgida de um jardim imenso em trevas. 
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos! 
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos! 
Alvoroçai-me, auroras nascituras! 
Eis que chega de longe, como a estrela 
De longe, como o tempo 
A minha amada última!




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